sábado, 23 de dezembro de 2017

AINDA O NATAL

PROSA DE NATAL
EMANUEL MEDEIROS VIEIRA
Naqueles natais não havia peru defumado, o irmão matava o bicho e tomava um gole de cana, papai pegava “barba-de-velho” para fazer o presépio, missa do galo, bonecas de pano, jogo de botão, bolinhas de gude. Não, não é um poema sentimental. Talvez nem seja uma prosa poética. Apenas uma "Prosa de de Natal". Não, não me chamo Raimundo (parodiando Drummond)., não gosto do gerúndio – e tudo já foi escrito sobre o natal. Incorporo Clarice Lispector como uma entidade mediúnica: A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho que ir buscar. Por destino volto com as mãos vazias. Shoppings cheios – como as novas catedrais do consumo, pacotes, gente estressada, um inferno com ar condicionado. Todos serão gentis, e depois esquecerão a ternura até o próximo natal, e a indústria precisa se renovar – o dinheiro, sempre ele. As mães, como os garotos, querem celulares de última geração e eletroeletrônicos da moda. Não é só a política que ficou irrelevante: a própria existência humana. O que aspirava? Plenitude – não perfeição. Mudou o natal?
Rezávamos em frente ao presépio, e juntos íamos à missa do galo. Mudei eu? (Todos perguntam.) Mudamos todos. Sim, fomos ficando velhos, outros morreram no meio do caminho.
Morreram pais, morreram mães, morreram irmãs, morreram amigos. Alguma entidade maior me fez depositário da memória da tribo. O passado escorre úmido – contamina o presente, Tento congelar o tempo – cristalizá-lo, para que ele fiquer sempre comigo, converter esse precioso instante em sempre, além de mim, além da vida, –até o pó que serei. Lembro-me de um piano numa tarde calma, de um subúrbio, de pão quentinho, de cadeira de balanço, de fogão de lenha, de tainha frita, de uma estação de trem, de um pé de amora, e também do mar – sempre ele. O que é o tempo? “O que é o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; Se quiser explicá-lo, já não sei”, socorre-me Santo Agostinho (354-430). Chamo Freud (1856-1939): O delírio é uma tentativa de cura do sujeito frente à catástrofe subjetiva, uma nova maneira de se vincular à realidade perdida. O que tem isso a ver com o natal? Tudo. E nada. O rio não é o mesmo – o menino talvez esteja naquela pele enrugada, mas isso é apenas um álibi compensatório, que a coisificação do mundo já não contempla. Fomos ficando para trás?
Mas também saberei rir nessa outra ceia, tantos anos depois, pois é preciso saber rir e não se dar muita importância. Brindaremos à vida – sim, à vida. O rio?