segunda-feira, 6 de julho de 2015

BELA CRÔNICA DE TARSO GENRO


Sobre um cão amarelo



Por Tarso Genro

No vasto espaço verde em que caminho pela manhã, sitiado por artérias de asfalto em que vibram as vidas da cidade, um cão amarelo cumpre, até hoje, uma rotina diária. É um cão vira-latas de focinho comprido e pelos eriçados, que após circundar o quarteirão e as suas ruas próximas, volta soberano à rua principal, no lado leste do parque, para desaparecer novamente na malha pulsante do bairro.

O cão amarelo faz sempre o mesmo roteiro, todos os dias, atravessando as ruas movimentadas pela faixa de segurança, parando um pouco em alguma sombra, no verão, e nos lugares abrigados para descansar, no inverno. Para e olha, como quem busca alguma coisa ou alguém. E cheira. Ergue o seu focinho agudo em busca de um sinal que lhe traga uma lembrança ou lhe sugira movimentos fora da sua rotina consagrada. Este é o cão amarelo, conhecido de todos que transitam por ali, que já lhe tratam como um ser participante da paisagem e integrante do cotidiano matinal do bairro.

Não sabia por quais associações de memória, sempre que via o cão amarelo na sua caminhada melancólica, lembrava de um livro de Leonardo Sciascia, “Majorana desapareceu”.  Neste livro do grande escritor italiano, obra-prima de ficção-reportagem,  Sciascia discute, avalia, poetiza, o desaparecimento inexplicado, em março de 1938, do físico Salvatore Majorana.

Este fato ocorreu pouco antes da Segunda Guerra Mundial e adquiriu notoriedade porque  Majorana seria o único físico italiano, discípulo de Fermi, capaz de levar adiante os estudos científicos de Marconi. Seriam estudos  de grande relevância para a “defesa nacional”, ou seja,  para as tentações expansionistas do fascismo, independentemente de que os cientistas fossem simpatizantes da aventura totalitária.

As dúvidas sobre o desaparecimento do professor suscitaram as mais diferentes versões, como aquela registrada por Sciascia: “É sabido que a ciência, assim como a poesia, anda de mãos dadas com a loucura: e o jovem professor tinha dado um mau passo ao jogar-se no Vesúvio, ou no mar, ou escolhendo um mais elaborado tipo de morte”. A partir da tarde de 26 de Março, em que Majorana desapareceu, presumiu-se por indícios que ele tenha navegado entre Nápoles-Palermo, a partir das 22h30, para depois nunca mais ser visto. Resta, até hoje, não solucionado o desafio registrado pela Polícia da época: “os mortos podem ser encontrados, os que desaparecem são os vivos.”

Um dia resolvi seguir o cão amarelo. Intuía que ele buscava decifrar algum mistério, o que,  de certa forma, poderia representar cada um de nós, em todos os tempos e locais: humanos buscando algo significativo no passado, utopias não realizadas, amizades frustradas por alguma desatenção, enigmas filosóficos e religiosos que, de forma mais (ou menos) elaborada, frequentam nossa vida comum.

Algumas vezes o cão amarelo parava numa esquina e parecia em dúvida sobre o caminho seguir, o que me fez considerar, não sem certa intuição romântica, que a sua procura era, ao mesmo tempo, consciente e instintiva. Como se o cão amarelo tivesse cumulativamente saudade e vontade de celebrar uma homenagem a um elo perdido, a uma dor solitária, que não queria compartilhar com ninguém.

Um dia resolvi seguir o meu amigo misterioso, o cão amarelo. Queria saber o motivo da sua caminhada infinita, as razões da sua angústia ou, quem sabe, buscar o reflexo, na sua saga diurna, daquilo que é um pouco o destino noturno dos sonhos de todos nós: permanecer com as procuras, organizar as lembranças e identificar, em certas paisagens, numa hora incerta, o acaso que nos renova ou uma súbita visão que nos oferta a esperança do reencontro. A busca, afinal, para talvez corrigir um mal-entendido ou fazer um gesto de compreensão.

Dei meia volta, quando ele passou ao meu lado, e segui o cão amarelo. Ele percebeu o meu interesse e resolveu esquivar-se. Parava, acelerava o passo, meneava a cabeça, voltava caminhar com a segurança de quem tem um roteiro a cumprir e um cotidiano amarrado em sentimentos sólidos, que não poderiam ser desviados. Eu disfarçava, entrava nas ruas perpendiculares e voltava, cauteloso. Seguia-o de uma maneira que os humanos julgam disfarçada, mas que o instinto dos cães de rua percebem como prenúncio de agressão e se põem em posição de defesa.

De repente o cão amarelo desapareceu e eu apressei meu passo em direção à esquina, na qual o perdi de vista. Foi impossível encontrá-lo.  Quase corri e não vi mais o cão amarelo. Sua ausência me inundou de uma tristeza imensa na manhã  de inverno. Era a perda de um amigo silencioso e incógnito, que eu queria resgatar, talvez porque me identificasse mais com as suas dúvidas do que com a sua determinação. Talvez porque visse nele um pouco de cada um de nós, talvez porque quisesse lhe oferecer um abrigo seguro e comida quente, como as pessoas normais fazem quando olham em volta e veem seres vivos sós e desamparados.

Quando voltava, desolado, parei na fruteira da esquina. E perguntei aos dois rapazes que trabalham na banca de flores e frutas, que recortavam de cores o cinza severo do dia: “vocês não viram o cão amarelo, para onde ele foi, quem ele é?”   -“Sim”, disse um deles sorrindo, “é o amarelo que faz o mesmo roteiro todos os dias, que dorme ali na frente do Hotel, que é alimentado pelo Alemão do cachorro-quente, mas que não aceita pão, que não permite que ninguém toque nele, mas que o pessoal já conseguiu  vacinar…”. Foi o que despejou o rapaz, num turbilhão de dados seguros, cuja refutação seria mais do que uma grosseria.

Fiquei perplexo. O que era mistério e drama para mim, era, para os rapazes da banca, um fato cristalino já integrado nas suas vidas, com pouco espaço para dramaticidade, pois o cão amarelo “estava bem” e sabia o que queria. Pensei que o cão amarelo, para mim, era o símbolo de um drama de todos os seres vivos que sofrem duramente as ausências e, contrariamente, para os rapazes da banca de frutas, ele era pura solução de um mundo real que se resolve por si mesmo.

Fiquei sabendo, então, que o cão amarelo perdera o seu dono, um morador de rua, que dormia no parque ou nas marquises do bairro. Este morador de rua, ou morrera ou fora recuperado pela família, sem a possibilidade de levar consigo o seu cão, que passou a ser um cão de rua. Um cão sem dono, um “cão sem plumas”, como quem sabe diria o poeta João Cabral de Mello Neto. Um cão que percorre todos os dias o mesmo caminho em busca do amigo que jamais voltará, mas que ele ainda guarda na memória como o amigo ideal que, em algum momento lhe faltou, e ele não entende porquê.  Daí o percurso, ao mesmo tempo lúcido e desesperado, no qual o cão amarelo fareja a recordação dos seus melhores tempos.

Penso hoje que o cão amarelo quer resgatar, com a sua caminhada diária nos lugares que conviveu com o seu dono, uma certa paz pela esperança do reencontro. Acho que, instintivamente, ele já sabe que o seu amigo não volta e que ele o perdeu para sempre. Mas esta sua determinação pelo reencontro, torna-o um pouco menos infeliz e lhe dá motivos para viver. O cão amarelo vive do reencontro impossível e a identificação do seu trajeto é uma espécie de corredor de luz de uma existência feliz, já realizada de forma incompleta.

Fiquei triste, é certo, mas também um pouco alegre. O cão amarelo não desistiu. Nem dos seus afetos, nem dos seus roteiros. Isso tem a ver com todos nós, em vários momentos da vida, quando buscamos processar as nossas perdas de rumo, em qualquer latitude da vida, sem abdicar da visão mais ampla dos nossos roteiros. E sem perder os sentimentos mais fortes que iluminaram os nossos afetos. Somos todos um pedaço daquele cão amarelo, que, no seu caminho repetido, dia-a-dia – num mundo de hostilidades e travessias –  também carrega um pouco de cada um de nós, da nossa melancolia teimosa de viver com esperança, fora de todas as recomendações da razão.

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Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.