domingo, 11 de agosto de 2013

DIA DOS PAIS - MENSAGEM DE IVAN SAUL


O galpão do velho Saul

 

Meu pai, aquele homem que teria completado seu centenário em junho passado, como o os pais do Ruy, do Eliseu, do Eliceu e do Élvio repudiava o desperdício, sendo homem de poucas palavras, tudo que se percebia era uma mudança na sua expressão, em geral, séria que no tempo de um suspiro era tomada pela tristeza da desesperança.

 

Meu pai, como forma de não desperdiçar tempo em diplomacia, caminhava pensativo, de cabeça baixa, a passos largos, com os ombros um pouco encurvados para a frente, mão esquerda no bolso e o indefectível cigarro na direita. Encontrando, diariamente, pelo caminho os mesmos 2 ou 3 que vinham em sentido contrário, do outro lado da rua – pois utilizavam-se as calçadas no sentido da mão – também se dirigindo ao trabalho, os saudava com um toque na pala do boné: "Sim senhor. Bom dia!" Andava seis quadras até o trabalho e esperava, conversando banalidades meteorológicas com o porteiro, para apunhalar com o cartão o desnecessário relógio ponto, transparecendo uma mistura de desdém e orgulho vitorioso por mais uma vez estar lá quando o ponteiro grande indicava 3 minutos para o início do expediente.

 

Nesse tempo, os equipamentos da central telefônica de Pelotas vinham diretamente da Suécia em grandes caixas de madeira. Caixas que abertas com cuidado, procedimento padrão à época, forneciam tábuas de pinho de Riga de meia polegada, aplainadas em uma das faces, que se prestavam muito à reutilização. Curtas na maioria das vezes, num tempo em que compravam-se tábuas com 5,5m de comprimento, para quem não conhece materiais de construção, atualmente é difícil encontrar madeira com mais de 2,5m [o que cabe na largura da carroceria de um caminhão].

 

Com essa madeira europeia, o velho que era obrigado a gozar férias em março, levou quatro anos para construir um galpãozinho que media internamente exatos 2x3m. Construtivamente relevante, a estrutura foi erigida com cruzetas de postes telefônicos que eram substituídas regularmente. Não se compartilhava a infraestrutura como hoje, quando penduram cabos de eletricidade, de telefonia e de televisão, todos no mesmo poste, enfeiando as cidades. As cruzetas, hoje feitas em concreto, também eram importadas e feitas de madeira europeia, resistente aos humores do clima, infelizmente não consigo lembrar o nome e o país de origem deste material.

 

A construção do tal galpão, em prestações, sem ser sinônimo, gerou uma expressão familiar para procrastinação, para tudo que nós adiávamos e prometíamos fazer depois, dizíamos "agora nas férias...".

 

No primeiro ano, dedicado ao revestimento externo das paredes e telhado, tive meu primeiro contato com as habilidades necessárias ao trabalho de carpintaria, ganhei meu primeiro martelo de verdade, com a recomendação de não chegar perto do galpãozinho. Como somos uma longa linhagem de homens “sem-graça” um irmão do velho que o visitava anualmente – em geral no carnaval que o paulista não era bobo [carnaval em Pelotas durava uma semana, com folias momescas diárias] – com vontade de trazer-lhe um presente, ou por ter recebido a amostra grátis, carregou pela metade do país um martelo, a porcaria, que conservo até hoje, era [e ainda é] muito leve e desajeitado tendo ficado guardado até que eu tivesse idade para que o presente me fosse repassado, não fiz essa maldade com meu filho que, todavia, haverá de herdá-lo.

 

O ano seguinte foi dedicado às esquadrias, duas janelas e a porta, feitas de “próprio punho”, uma grande estante para livros, e ao revestimento interno, forro e duplagem das paredes, em compensado de embalagem de geladeiras. Nada dessa coisa moderna de deixar rejuntes aparentes para disfarçar com massa plástica, sem utilizar retalhos, as lâminas eram pregadas sobre a estrutura e recebiam um sarrafinho desquinado em “D” nas frestas do teto; sobre os rejuntes verticais umas ripinhas largas também desquinadas e tábuas caneladas sobre o rejunte à meia parede de altura. Tais eram os detalhes de acabamento que acabaram consumindo as férias do segundo e terceiro ano de construção.

 

Restando para o quarto ano, primeiro, o acabamento da tal estante para os livros que se empilhavam ainda no meu quarto, pois não seriam pranchas simplesmente, as bordas e quinas mereceram atenção e revestimento e, depois, o equipamento com uma mesa de estudos articulada sobre a parede em frente à estante e, no nicho entre a estante e a parede do fundo, uma cama, também dobrável [lastro de arame tramado e molas, herdada de alguma tia].

 

Enfim, se a narrativa ficou aborrecida, imaginem como terá sido a construção propriamente dita. Faço questão de torná-la pública desta forma por prestar-se à reflexão, homem de muito poucas palavras e nenhum gesto de carinho, meu pai dedicou mais de quatro anos me ensinando, da única forma que sabia, a importância da paciência e persistência, do trabalho duro, feito com gosto e capricho, da parcimônia na utilização de recursos, da ausência de limites para a criatividade. Ademais, meu velho construiu um monumento ao saber, ao enriquecimento cultural, simbolicamente me disse: “taí, agora se vire, estude, eu lhe dou todos os meios ao meu alcance”.

 

Lastimo ter comprometido 30 anos da minha vida para entender tais mensagens, provenientes de um homem que nunca nos disse “não”, tanto por desnecessário, pois não lhe solicitaríamos o impraticável, quanto por estímulo ao enfrentamento dos desafios que nos impúnhamos com nossas escolhas.

 

Fraternal abraço e Feliz Dia dos Pais!

 

Ivan