terça-feira, 26 de julho de 2011

S c h m i e r , conservas e poupança reveladoras da cultura hibernal alemã, por Lissi Bender Azambuja*, diretamente da Alemanha




É preciso levar em conta que ao longo dos séculos os alemães passaram por muita carestia, por diferentes razões, principalmente climáticas, culturais e históricas. De há muito haviam aprendido a armazenar mantimentos para os períodos de carência, de penúria, haviam aprendido a ser parcimoniosos, aproveitando tudo que a terra dá, transformando seus frutos, prolongando sua vida útil. Economizar, guardar, preservar passou a fazer parte de seu modo de vida.

Na Europa central, o clima permite apenas uma colheita por ano e tudo precisa ser muito bem aproveitado e depois bem preparado para poder servir de alimento durante o período em que terra descansa sob um manto de neve. Condições adversas levaram as pessoas a desenvolveram formas de prolongar a vida útil de alimentos: o repolho era posto a azedar com sal – Sauerkraut ( chucrute); os pepinos eram conservados em água, sal e condimentos; as frutas eram fervidas e transformadas em compotas ou secadas; sementes eram armazenadas; carne se temperava e defumava, fazia-se linguiças defumadas ou fervidas como a Leberwurst (morcela), o Schwartenmagen (tipo fiambre de miúdos suinos), a Sülze (gelatina de carne). Carnes fritas eram acomodadas em cântaros cobertos de banha e assim se garantia a proteína. Era preciso produzir, colher, armazenar, nao desperdiçar nada, poupar para não precisar passar fome durante o infindável tempo de inverno e de carestia.

Açúcar pouco fazia parte dos hábitos dos alemães antes de saírem de sua Heimat. Era um produto caro posto que era importado. Somente a partir de 1850 iniciou a produção de açúcar extraído de Runkelrübe, beterraba de forragem (lembro que na minha infância alimentávamos os porcos com Runkelrüber). Delícias confeccionadas a partir do açúcar só mesmo em eventos muito especiais. Em contrapartida conheciam mel, cultivavam colméias de abelhas. Principalmente com mel faziam suas delícias: pão de mel: Lebkuchen, bolo de mel: Honigkuchen, bolachinhas de mel: Honigplätzchen, e mesmo cerveja: Honigbier.

Vieram para o sul do Brasil, terra que Deus abençoou com até 03 (três) colheitas por ano, sem neve, e onde se pode, sem muito trabalho, colher frutos o ano inteiro. Em solo gaúcho os imigrantes conheceram e aprenderam a cultivar novos alimentos como o milho, a batata doce, a abóbora, o chuchu a cana-de-açúcar, entre outros, e aproveitá-los, usando para tanto seus conhecimentos prévios no preparo de diferentes comidas. Da cana-de-açúcar aprenderam a extrair a calda, a Zuckerrohrbrühe e com ela produzir o açúcar mascavo, o “braune Zucker” e o melado, o “Sirup”. Com melado faziam “Sirupkuchen”, o bolo de melado, uma variante do Honigkuchen.

É preciso conhecer um pouco a história de vida dos alemães para entender o espírito de parcimônia, de preservação que moldou suas vidas ao longo do tempo, considerando as circunstâncias geográficas, históricas e culturais em que a vida deles se constituiu durante séculos, para poder entender a sua forma de vida construída em solo rio-grandense. Não vai longe o tempo em que era comum ornamentar a parede da cozinha com panos brancos no quais eram bordados dísticos, provérbios, orações que refletiam um pouco de sua concepção de mundo: de sua Weltanschauung (em alguns lares os Wandschoner [ papel de parede {enfeite} ] continuam presentes). Entre os ensinamentos religiosos ou de conduta, destacavam-se alguns que também eram reiteradamente usados na educação dos filhos. De minha própria infância faziam parte, em incontáveis vezes, quando minha Wowa (como chamávamos nossa avó) em sua preocupação para nos legar a importância do economizar, do guardar, do preservar - repetia para nós: “Spar in der Zeit, dann hast du für die Not” (Economize quando tens e terás quando precisares), ou quando nos mostrávamos insatisfeitos com o que tínhamos ou ganhávamos, ela nos dizia: “Wer das Kleine nicht ehrt, ist das Große nicht wehrt” (quem não valoriza o que é pequeno, não merece o que é grande).

Conhecendo um pouco desse espírito alemão, pode-se entender melhor o modo de vida implantado na nova “Heimat”- na nova querência. Diante da abundância na terra da cocanha, das Schlaraffenland, era preciso não deixar nada se perder, era preciso previnir para tempos difíceis. Minha Mama Hulda ouvia de seu Papa Wilhelm histórias de dificuldades e aprendera com ele que era preciso sempre ter alimentos guardados. Ela plantou aipim até final de seus dias (assim havia sempre uma raiz guardada sob a terra), mesmo que dela não mais precisasse, mas era um hábito herdado. E “hábitos são realidades de longa duração”, diria o sociólogo Bourdieu.
Utilizando seus conhecimentos trazidos, fizeram valer seus hábitos seculares de transformação para a preservação. Com a abundância da cana de açúcar, da bata doce, da abóbora, das frutas cítricas, de outras frutas, era natural que precisassem encontrar formas de preservá-las, de prolongar a sua vida útil. Além de compotas, da secagem das frutas, ferviam a batata doce, ou abóbora, ou laranja, ou outras frutas com a calda de cana ou melado e o resultado, a “Schmier”, (vem de schmieren – untar, passar no pão. Na Alemanha, “Marmelade”) é uma maravilhosa forma de preservação sem conservantes dos frutos da estação. Uma síntese de conhecimentos passados com novos alimentos encontrados na nova “Heimat”.

Produzir “brauner Zucker”, “Sirup” e “Schmier” fazia e ainda faz parte do cotidiano de muitos descendentes de alemães no interior. Assim as frutas de cada estação são bem aproveitadas e garantem a cobertura do “pão nosso de cada dia”. Na minha infância fervia-se Schmier em casa, e na vizinhança, principalmente durante o inverno. Associo até hoje inverno ao aroma de Sirup sendo fervido em grandes tachos de cobre sobre fogo de chão. O ar aromatizado pela fervura de Sirup me reporta a minha infância, faz me rememorar quando junto com meu Bruder Ingo e a Schwester Wetzia ficávamos ansiosos esperando o braune Zucker ou a Schmier serem retirados do tacho para podermos, de colher em punho, raspar os restos. Hmm… delícia que às vezes se transformava em dor de barriga quando nos excedíamos. Hoje se continua a produzir Schmier para suprir a mesa do café da manhã em muitos lares.

No entanto, a produção de Schmier e de outros alimentos resultantes de conhecimentos trazidos e aqui desenvolvidos pelos imigrantes alemães e seus descendentes, podem se transformar numa interessante alternativa para a sustentabilidade da agricultura familiar, no sentido de produzir renda e oferecer alternativas para a diversificação nas colônias que estão sob a ameaça de ter de reduzir a cultura do fumo. A partir de conhecimentos passados de geração em geração, os agricultores podem revalorizar estas práticas, produzindo e destinando seus produtos não somente para o consumo próprio, mas também para suprir demandas locais, bem como para o desenvolvimento turístico.

Mas, para desenvolver turismo, não basta produzir bens materiais para a venda, é preciso também valorizar e agregar antigos conhecimentos, elementos culturais herdados. Existe todo um vasto mundo cultural que se expressa na música, no canto, na dança, nos jogos, na culinária, em elementos folclóricos, na toponímia original, no modo de vida associativo, na religião, na língua alemã que é o suporte de todo esse mundo cultural. Com o patrimônio material e imaterial, potencialmente presente nas colônias, podem ser construídas alternativas para a geração de mais qualidade de vida nas regiões de colonização alemã. Promovendo desenvolvimento que une passado com o presente para o futuro. Para o turismo isto significa colocar sob holofotes o que a região tem de diverso, suas especificidades, suas especialidades, sua cultura, sua língua regional. Tudo isto existe nas comunidades de origem alemã e espera ser redescoberto e revalorizado tanto pelos descendentes, quanto pelas forças políticas, e apoiadas pela comunidade em geral para o favorecimento de toda a coletividade regional.

Título original:

Lissi Bender Azambuja* é professora da Unisc –
Universidade de Santa Cruz
e doutoranda em Antropologia Cultural pela Universidade de Tübingen